25 de agosto de 2006

O chato da poltrona ao lado


Em um avião, não há como não se considerar o risco. Convenhamos, voar não é um atributo natural do ser humano. Fazê-lo em um charuto voador, 15 quilômetros acima da terra, a 900 km/h é menos natural ainda.
Um professor no colégio explicava assim porque nunca considerava "meio certas" as respostas de suas provas:

- Não existe meio certo. Ou é certo ou é errado. Um piloto de avião meio certo, ao invés de aterrissar suavemente vai despencar do céu feito uma pedra.

Lógica incontestável, sem dúvida, embora um tanto quanto fatalista. Fato é que, apesar dos riscos, me acostumei com aviões desde pequeno. Por morar em cidades diferentes da grande maioria da família desde que nasci, viagens de avião eram coisas certas de acontecer a cada vez que se encerrava o semestre letivo na escola. BH-Brasília, Brasília-BH. Depois Salvador-BH, BH-Salvador. Mais tarde, vieram as viagens sozinho, menor desacompanhado, essas coisas. A gente vai aprendendo qual é o lado que não bate sol, qual o melhor lugar para pegar pouco barulho, onde o carrinho com o rango passa primeiro, essas coisas indispensáveis a uma boa e divertida viagem. Mas não há, nunca houve, maneira de se prever, de se evitar ou de se livrar do maior de todos os incômodos de uma viagem de avião: o chato da poltrona ao lado. Um acidente, uma queda, qualquer coisa dessas dura poucos segundos. O chato dura o tempo que durar a viagem, às vezes mais, se ele resolver te acompanhar na descida do avião. Conheci muitos chatos de avião. Alguns foram esquecidos ainda no caminho que leva até a porta da aeronave. De outros, eu lembro.
Meu primeiro embate memorável foi com um senhor nissei que se dirigia a Tóquio via Toronto, meu destino. No longo caminho do Rio até a cidade canadense, fui vítima de um erro trágico de meu pai. Ao fazer a mesma viagem, uma semana antes, ele me indicou e deixou reservada a poltrona 14H (nunca me esqueci do número), onde havia um corredor de emergência à frente que permitia esticar as pernas. O detalhe que não se podia perver era que, no vôo dele, a poltrona 14H era na seção de não-fumantes. Na minha viagem, o setor era de fumantes. E o tal japa-nissei-sansei-nãossei fumava feito uma chaminé. O vôo totalmente lotado não me permitiu corrigir o equívoco e tive a oportunidade de me sentir dentro de um cinzeiro por 12 horas, durante as quais o japa consumiu um maço e meio de Free. Aos que hoje me conhecem e sabem que eu tenho este péssimo hábito de fumar, talvez não queira dizer nada, mas na época eu não fumava e tinha alergia a fumaça de cigarro! Meu estado ao chegar a Toronto era terrível. Além de fumar muito, o japonês também falava muito e mostrava muitas, muitas fotos. Falava algum idioma entre o japonês e o português, algo que para mim era incompreensível. Não falava mais nada de inglês, francês, nada. Ao chegar a Toronto, era uma barata tonta, sem saber para onde ir, onde pegar sua conexão para Tóquio. Desesperado, se aproxima de mim no saguão e me pede ajuda. Lembrei das dezenas de fotos e do maço e meio de cigarro que fui obrigado a compartilhar com ele, contra minha vontade. Lembrei do cheiro insuportável de cigarro que estava entranhado na minha roupa. Minha vontade era mandar o japa para outro aeroporto, mas aí eu me lembrei também da boa educação que tive e acabei por mandá-lo ao lugar certo (o balcão de conexões, não a PQP). Castigo por castigo, estar viajando por aquela porcaria daquela Canadian era suficiente para ele. Mas a Canadian já é outra história...

O japa me deixou mais escolado. Alguns anos depois, uma senhora ocupava a poltrona ao meu lado já deixando claro que minha viagem seria cheia de perguntas e fotos de netinhos e da família. Discretamente (não há porque magoar uma boa senhora...), perguntei sobre a possibilidade de ser mudado de lugar, o que foi impossível por estar o vôo novamente cheio. Esperava pelo início do bombardeio verbal quando vejo a senhora apegada a medalhas, santinhos e terços, muito nervosa. Perguntei se ela tinha medo de voar e, diante da resposta afirmativa, soube direitinho o que fazer. Esperei que ela puxasse conversa novamente e, simulando um certro receio, perguntei-lhe apontando a aeromoça que entrava na cabine do piloto (na época em que elas não eram blindadas, of course...):

- A senhora reparou? Acho que é a terceira vez que a aeromoça entra com um copo de uísque na cabine do piloto...

Ajudou o fato de o avião passar por uma pequena turbulência exatamente nesse momento. A velha entrou em parafuso, queria ir tomar satisfações com o irresponsável. Disse a ela que o melhor seria ficar de olho e interpelar a aeromoça no flagra, para que ela não pudesse negar que estava levando álcool para o piloto. Concordando comigo, a boa (e crédula) senhora passou o resto da viagem qual uma águia, sempre a espreitar a cabine e sua movimentação. Quando eu acordava dos rápidos cochilos que consegui dar, ela me informava, solícita:

- Por enquanto, nada. Ela passou aqui com um copo de bebida, até achei que fosse para o piloto, mas era para aquele senhor da primeira fila. Estou vigiando, onde já se viu!

E eu, bocejando:

- O que seria de nós sem a senhora? Quando chegarmos a Belo Horizonte, não vou me esquecer que foi por sua causa...

Ficou com pena? Pensou em me incluir em uma pouco recomendável categoria de pessoas que não se compadecem dos idosos? Fique à vontade, você nunca deve ter se deparado com um idoso chato na poltrona ao lado no avião.

Finalmente, anos depois do japonês, quando já havia me tornado um contumaz consumidor de tabaco em cilindros de papel, também conhecidos como cigarros, acabei mais uma vez parando no lugar errado, uma fileira atrás de onde deveria estar, na seção de não-fumantes. Assim que acendi meu primeiro cigarro, um yuppie na poltrona ao lado, com rabo-de-cavlo e um terno que parecia ter verniz, de tanto que brilhava, me alertou para o fato de maneira um tanto afetada:

- Você só cometeu um engano, rapazinho... sentou onde não devia...

Depois de tanta delicadeza, senti-me na obrigação de também ser fino. Aproveitei que o copo de uísque que eu segurava havia deixado escorrer algumas gotas de água na palma da minha mão e fiz cara de exterminador do futuro, encarei o yuppie e apaguei o cigarro na palma da mão, deixando-o estarrecido, acreditando que tinha feito isso na minha própria pele, enquanto dizia ao marrentinho:

- Você também cometeu um... falou com quem não devia... você sabe que eu sou?

E não disse mais nada. Desse momento em diante, o sujeito não me olhou mais nem quando eu acendi o décimo cigarro. E ainda dava um jeito de se encolher todo sempre que eu me mexia na cadeira, morrendo de medo de esbarrar em mim. Finalmente, eu havia descoberto a fórmula para me livrar deles, os chatos da poltrona ao lado.

2 comentários:

Anônimo disse...

Marceleza, só de imaginar essa última cena com o engravatado, estou dando risada... só vc, mesmo...

Teu blog tá ótimo!

Bjs,

Lika

Anônimo disse...

Só faltou o "I'll be back". Mas aí, vc ia ter que pagar royalties pro Schwarzenegger...