14 de janeiro de 2014

Ao Márcio

Foram dois anos de convivência diária e, depois disso, já são quase vinte de uma admiração reverente pelo sujeito, um cara tão irreverente quanto possível quando não estava num de seus famosos ataques de mau humor. Um mau humor que, diga-se de passagem, era motivo até mesmo de uma auto-ironia, fina como era o próprio, ao me presentear, num Natal, com um exemplar do livro “O Melhor do Mau Humor” que tenho agora, enquanto escrevo, diante de mim com um cartão encimado por seu nome impresso que me dizia: “Agora você vai ver e ler donde vem a minha inspiração para exibir tanto bom humor”.
O início, é mister que se diga, não foi auspicioso: redator inexperiente, recém-chegado à agência, fui levar um de meus textos para que passasse por sua criteriosa e sempre extremamente bem-feita revisão (coisa que, ressalte-se, aprendi a fazer com ele e até hoje, quando faço as indicações de correções nos textos que porventura são submetidos à minha análise, utilizo as mesmas indicações que aprendi observando-o e ouvindo dele todos os porquês de se marcar determinada coisa assim e outra coisa assado). Disse que eu era inexperiente? Pois sim, mas também era consciente de que não cometia erros de português com frequência, de modo que foi com certa impaciência que esperei que ele lesse o texto uma, duas, três vezes, intercalando seu olhar entre o texto e a minha cara ansiosa para, tomando coragem, perguntar-lhe:
- Você achou um erro?
Com o “bom humor” que lhe era peculiar, fez o seu famoso “hunf” e me disse apenas isso, seco e cortante:
- Ainda não.
Para, em seguida, reforçar a parte que deveria fazer com que eu me recolhesse à minha insignificância:
- Ainda...
Com meus brios desafiados e a confiança sem limites que a pouca idade e a falta de experiência me conferiam, lancei-lhe o desafio, sem nem imaginar a quem o fazia:
- Pois eu pago uma cerveja a cada erro meu que você encontrar.
E ele, na lata, demonstrando desde esse primeiro contato a verve, a ironia e a genialidade que passei a admirar:
- Obrigado, mas não quero virar alcoólatra.
Foi só no retorno à sala da criação que fui interpelado pelos presentes à cena que, apavorados, me diziam que aquele revisor a quem eu havia acabado de desafiar era não apenas um dos sócios da agência, mas também um grande escritor e um cronista de mão cheia, que certamente não me perdoaria pela ousadia.
Exceto pela parte em que afirmaram que ele era um dos sócios da agência, erraram nas outras afirmações: primeiro porque o queridíssimo Márcio Rubens Prado era um escritor e cronista não de mão, mas de alma cheia, cuja prosa tinha o dom de sempre me colocar um pouco triste, pois aquele texto teria um fim e o prazer que sua leitura proporcionava se findaria igualmente. E segundo porque ele me perdoou pela ousadia, sim. Embora tenha sido, desde esse dia, o mais atento revisor do mundo, sempre ávido por me surpreender num erro, gosto que eu ia me recusando a dar-lhe dia após dia, ao mesmo tempo em que ia tomando contato com suas crônicas saborosas, suas observações certeiras e ácidas sobre a natureza humana e sua aversão pelo trocadilho, que eu, ao contrário dele, sempre apreciei e usava, não sem parcimônia, só para vê-lo exclamar seus famosos “hunfs", para depois, quase que às escondidas, permitir-se rir e comentar, obviamente sem que eu estivesse por perto para me dar esse gostinho:
- Até que esse foi bom...
O mesmo comentário, aliás, que ele dirigia a mim quando passei, então, a submeter ao seu crivo alguns dos textos não-publicitários que eu cometia nessa época, que ele lia e, eventualmente, circulava em vermelho certas passagens, me devolvendo sem dizer mais nada. E eu, ao analisar depois, sempre chegava à conclusão de que era realmente o trecho circulado que poderia melhorar, que quebrava o ritmo do texto e que precisava ser reescrito. Até que, um dia, ao me devolver um deles, me disse o seguinte:
- Olha só, você gosta dela, ela gosta de você, vocês precisam parar de se encontrar desse jeito. Assume o caso e leva ela a sério!
Pasmo, sem compreender e com medo do mal-entendido, já que eu tinha namorada, perguntei de quem se tratava e ouvi dele a resposta, genial como sempre e provavelmente o maior elogio que eu recebi na minha vida escrevinhante:
- A língua portuguesa, oras. Eu sei que você gosta dela, mas parece que é recíproco. Leva isso a sério.
Desde então, eu tento. E sempre que termino um texto que acho particularmente bom, tento imaginar o que me diria o Márcio, como que a tentar saber se é realmente bom assim a ponto de ser capaz de passar pela escrupulosa análise dele.
Hoje de manhã, veio a notícia: Márcio Prado cometeu a deselegância, talvez única na sua vida, de nos deixar sem a perspectiva de um novo texto, de uma nova tirada, de um novo e mal-humorado “hunf”. Essa alma prodigiosa que não certamente por acaso tem sua origem numa localidade que tem alma até no nome, São Miguel y Almas de Guanhães, partiu. Vítima de uma doença do coração que deveria ser ainda mais grave por ser o mesmo grande como era. Tão grande que, muito tempo passado do dia em que lhe lancei o desafio de pagar uma cerveja a cada erro meu que encontrasse, ele me chama à sua sala e me mostra que eu havia, afinal, lhe dado esse gosto. E, ato contínuo, saca um calendário da gaveta e me diz, mostrando o quanto aquilo havia mexido com ele:
- Nesse dia aqui, que eu até marquei no calendário, você me disse que me pagaria uma cerveja a cada erro seu que eu encontrasse e eu te disse que não queria virar alcoólatra. Pois eu teria ficado mais de um ano sem beber...
Grande Márcio Rubens Prado! A tristeza pelo seu passamento, que me trouxe lágrimas aos olhos, só não é maior do que a enorme alegria por tê-lo conhecido, pelo privilégio de ter sido tantas vezes convidado a acompanhá-lo nas suas visitas às livrarias da Savassi onde você me indicou tantas leituras e pela grande sorte que eu tive de ter podido aprender tanto com um mestre como você. Vai em paz. Obrigado por tudo! E me perdoe se este texto não é, nem de longe, tão genial quanto o que você produziria. De qualquer forma, certamente é bem melhor do que teria sido se você não tivesse passado pela minha vida.

25 de março de 2013

Seb, the silly


Imaginemos a cena: um tenente, na linha de frente numa guerra, recebe uma ordem para retirar suas tropas do combate e consolidar sua posição. Só que, ao invés de cumprir a tal ordem, resolve, por conta própria, atacar a posição inimiga, o que faz com êxito. E que, informado do ocorrido, o comandante decida pelo seguinte:
            - Deem-lhe uma medalha pelo ataque bem sucedido e, logo em seguida, enviem-no à Corte Marcial por desobedecer uma ordem direta.
            Difícil imaginar? Pois deve ser mais ou menos esse o sentimento corrente na equipe Red Bull de F-1 nesta segunda-feira pós-GP da Malásia. Na pista, os dois pilotos da equipe, ocupando as duas primeiras posições na prova, receberam a mesma instrução para mudar o regime de rotações dos motores e poupar seus equipamentos. “Trazer as crianças para casa”, como gostava de dizer a Ferrari. Mas eis que o alemão Sebastian Vettel, tricampeão do mundo e um dos mais completos pilotos da atualidade, resolve desobedecer a ordem e ataca seu companheiro de equipe brigando pela primeira posição, que acaba por conquistar, já que seu rival havia obedecido à ordem recebida e tinha um motor que, naquela altura da prova, rendia menos. Num mundo politicamente correto (e político) como a F-1, o comentário da equipe pelo rádio soou quase como uma Corte Marcial: “This is silly, Seb”, isso é bobo, Seb. Não era o combinado. Não era o correto. Não era o justo. E não foram precisos mais do que alguns minutos para que o próprio Seb, constrangidíssimo na sala de imprensa na entrevista pós-prova, reconheceu o tamanho da besteira que havia feito, pediu desculpas, e tal. O que, obviamente, não retirou de seu companheiro de equipe Mark Webber a cara de pouquíssimos amigos que tinha na ocasião.
            Perguntará o leitor mais competitivo se eu tenho algo contra um piloto que busca a vitória sem se dar por vencido. Não, não tenho, aliás, acho que eles estão em lamentável falta no mercado atual. Perguntará o leitor amante da lei e da ordem se eu não acho que acordos e regras foram feitos para serem cumpridos. Sim, acredito que sim. E é por isso que o episódio como um todo me causou estranheza e chamuscou de certa forma duas imagens bastante positivas que eu tinha formado.  Primeiro, pela atitude da Red Bull de dizer que estava bom, que diminuíssem os giros do motor e terminassem a prova. Não esperava tal atitude de uma equipe que sempre pregou (e colocou em prática!) a política de que é na pista que se decidem as corridas, tendo sempre ido contra essa tenebrosa tendência de querer resolver as coisas com ordens via rádio (‘Fernando is faster than you”, lembram?). E, para não dizer que isso é exceção, basta lembrar que, apenas uma posição atrás desse imbróglio da Red Bull, Lewis Hamilton e Nico Rosberg receberam da Mercedes ordem para manter suas posições na pista, com clara vantagem para o inglês, isso só pra ficarmos num episódio recente e não termos que lembrar daquele “hoje não, hoje não... hoje sim, hoje sim” da vitória que Barrichello foi obrigado a ceder para Schumacher na Áustria, em 2002 (ordem, aliás, dada pelo mesmo Ross Brawn, na época na Ferrari, que ontem mandou Lewis e Nico ficarem quietinhos). Foi bastante decepcionante perceber que a Red Bull, ao invés de se manter firme na sua política de deixar as coisas se resolverem na pista, começa a ser contaminada por esse pensamento mesquinho e babaca que nega toda a competitividade que a F-1 deveria ter. A segunda imagem que se chamuscou foi a do próprio Vettel, que foi, para dizer o mínimo, de uma trairagem sem tamanho. Esperou que o outro diminuísse o ritmo do motor e caiu matando em cima dele, sem se preocupar com mais nada que não fosse a primeira posição. Repito: nada contra o piloto que busca a primeira posição de forma sistemática e me lembro sempre de Ayrton Senna, que era desses. Lembro do tanto de vezes que ele, tentando ganhar a corrida na primeira volta, acabava por sair da prova ou quebrar o carro. E aí, não posso deixar de me lembrar também de Ímola, em 1988, quando ele e o Prost tinham dois carros que eram de outro mundo (ganharam 15 das 16 corridas daquele ano e só não ganharam todas justamente porque o Senna se afobou na hora de ultrapassar o retardatário Schlesser e entregou a corrida de bandeja para uma dobradinha da Ferrari, um mês depois da morte de Enzo Ferrari, que certamente deve ter tido alguma coisa a ver com isso manobrando lá de cima...) e um acordo de cavalheiros que os impedia de disputar posição nas primeiras voltas. Mas já ia longe o tempo dos cavalheiros na F-1 e Senna, fiel a seu estilo, passou o francês logo na primeira volta e ganhou a prova, dando início à sua histórica rivalidade com Prost, que reclamou um monte da manobra.
            Pois foi mais ou menos isso que aconteceu ontem. Vettel não precisava disso para se afirmar e nem para reafirmar sua posição dentro da equipe. Ele tem três títulos mundiais na sequência e só um louco consideraria Webber mais importante para o time do que ele. Mas ordem é ordem e, ao piloto, de dentro do carro, não cabe questionar, cabe seguir a orientação. Agindo como agiu, Vettel correu o risco de fazer estourar seu motor, de causar um problema mecânico, de pôr por terra um resultado que estava muito bom para a equipe. E a Red Bull que se explicasse depois da prova e encarasse a decepção dos fãs que, como eu, achavam que por lá esse tipo de coisa não acontecia. No final, nada aconteceu com o carro. Mas a relação com seu companheiro de equipe, essa certamente se quebrou de forma que nem todos os mecânicos do time trabalhando juntos seriam capazes de consertar. Assim como Senna e Prost depois daquele domingo em Ímola, em 1988, Vettel e Webber provavelmente se tornarão dois estranhos na mesma casa. Tenho aqui pra mim que Vettel, na primeira ocasião que puder, deixará que o australiano o ultrapasse no final de uma corrida e tentará, com isso, recuperar um pouco de sua imagem com o ato. Puro achismo, mas seria o mínimo a fazer. Mesmo assim, a confiança entre ambos provavelmente nunca será restabelecida. O correto a fazer, se era a intenção dele atacar o companheiro, seria dizer pelo rádio que não ia diminuir nada e que iria pra cima, dando a Webber, no mínimo, a possibilidade de responder ao ataque nas mesmas condições. Mas Vettel preferiu outro caminho.

         Silly, Seb. Que bobo que você foi.

         Quem é doido de não achar que esse negócio de equipe decidir quem chega na frente é péssimo para a F-1?

18 de março de 2013

Marcha, Soldado (2) - A sala dos homens de cócoras


Alguns posts atrás está a estória de como eu cumpri meu dever patriótico de oferecer meus serviços ao Exército Brasileiro (veja aqui). Torcendo igual maluco para que eles agradecem e dispensassem o oferecimento, mas cumpri. E daí que chega a hora de o Exército, desafiando a sabedoria popular que diz que a cavalo dado não se olha os dentes, nos obrigar, a mim e ao enorme contingente de rapazotes que haviam completado ou iriam completar até o final daquele ano os seus dezoito anos de idade, a passar por um exame médico para conferir se possuíamos a saúde necessária para servir à Pátria.
            Como nunca fui, com a graça do Eterno, uma pessoa de saúde fraca, havia o risco de que fosse selecionado para vestir o verde-oliva de uma farda. O que, naquelas alturas do campeonato, seria algo totalmente indesejável, já que teria que sair da escola, adiar os planos de fazer uma faculdade e atrasar minha vida durante todo o período que durasse tal chamamento da Pátria. Foi a vez do meu pai, sujeito que mantinha boas relações com o Exército Brasileiro desde que, no desempenho de suas funções profissionais, havia cedido um espaço sob sua administração para que os homens de verde-oliva pudessem sediar ali uma exposição. Ganhou até diploma de “amigo do Exército Brasileiro”. E, como amigo da instituição, explicou o problema que minha convocação suscitaria e pediu uma interferência no sentido de que tal contratempo fosse evitado. Assim, no dia marcado para minha apresentação para os exames médicos, fui acompanhado pelo capitão Jorge, que faria as tratativas necessárias para que minha dispensa ocorresse sem problemas. O que eu não sabia era o grau de amizade do meu pai com o glorioso Exército Brasileiro. Que, a julgar pela maneira como fui tratado, era praticamente uma amizade de infância.
            Logo no começo, passei acompanhando o capitão Jorge por uma longa fila que se formava, onde os jovens esperavam por sua vez de serem submetidos à avaliação médica. Chegando à frente da fila, o capitão Jorge, na maior falta de cerimônia, chama um cabo ou sargento que era o responsável, cochicha alguma coisa no ouvido do sujeito e, após uma continência batida de pronto pelo interlocutor, sou orientado a assumir o primeiro posto da fila. O que, se me poupou de uma longa espera na tal fila, não me poupou dos comentários que naturalmente começaram a surgir. Pobre da minha mãe, que não tinha nada a ver com nada daquilo e era homenageada por muitos dos que se revoltavam contra a (reconheço) injustiça. Pelo menos a espera foi rápida e, tão logo saía do exame o grupo anterior, formado por vinte pessoas, entrei na sala dos médicos com outras dezenove. Sala de exame, óbvio, é modo de falar. Parecia mais um paredão de fuzilamento. Encostados a uma parede, encarávamos uma mesa onde oficiais médicos nos observavam atentamente. Fomos, então, orientados a nos despir, mantendo apenas a cueca. Então, um momento hilário: apesar de muito clara a orientação para mantermos apenas a cueca, um dos vinte do meu grupo manteve também as meias. Um dos oficiais, que passava pela fila checando nome de um por um, deteve-se em frente a esse rapaz e vociferou:
- Sargento!
- Senhor, meu capitão – apressou-se em responder o sargento, postando-se à frente do oficial em posição de sentido, com cara de que sabia que vinha coisa por aí.
- Você orientou o pessoal a ficar só de cueca, sargento?
- Positivo, meu capitão!
- Orientou esse aqui também? – indagou apontando o rapaz de meias, bem em frente a ele.
- Positivo, meu capitão.
- E por que permitiu que ele não seguisse a orientação, sargento?
- Não permiti, meu capitão. Ele foi orientado.
- Resolva isso, sargento! – ordenou o capitão, dando as costas ao sargento e ao rapaz que insistia em manter as meias.
Imediatamente o sargento adquiriu outro tom de voz e se dirigiu ao rapaz já aos gritos:
- Você é surdo, é burro ou tá de sacanagem, rapaz? Não ouviu que é pra ficar só de cueca, não?
- Não posso tirar a meia não, senhor! – foi a resposta balbuciante do rapaz, que se apequenava a olhos vistos diante da situação.
- Como é? Não pode? Da Silva! Araújo! – chamou o sargento, sendo prontamente atendido por dois soldados enormes, daqueles de dar medo. – Ajudem o rapaz a tirar as meias!
Antes que fosse virado do avesso por aqueles dois brutamontes, o rapaz gemeu:
- Tudo bem, tudo bem... eu tiro.
E, tirando a primeira das meias, revelou o que tanto tentava esconder: tinha as unhas dos pés pintadas, despertando a gargalhada geral dos que estavam enfileirados e uma cara no oficial que até hoje eu não sei se era ódio, revolta ou vontade de abater o pobre ali mesmo, a tiros. Vermelho como um tomate, o oficial estava num estado de nervos tal que mal conseguia falar direito:
- Peguem... Tirem... Levem.. Querem saber? Levem esse veadinho para a salinha e deixem lá até eu resolver o que fazer com ele. Só não mando pra fila dos que vão servir agora mesmo porque ele é capaz de gostar de viver cercado de homem! Você vai ser dispensado, meu jovem. Mas vai se foder um bocado pra conseguir isso!
Passado esse momento de distração, era hora de retomar os trabalhos. E lá vinha o oficial médico de um em um, mandando que abaixássemos a cueca, colocássemos a mão na boca e soprássemos com força, a fim de verificar a presença de alguma hérnia nas nossas partes baixas (em tempo: ô tarefa ingrata, essa de sair conferindo o bilau de um por um. Servir a Pátria exige sacrifício, só pode ser isso...). Quando chegou a minha vez, um cabo correu até o oficial e disse-lhe alguma coisa para, em seguida, ele me mandar não abaixar a cueca:
- Você não. Você está com o capitão Jorge, vai ser dispensado.
E, assim sendo, com minha intimidade preservada dos olhares curiosos do tal médico, fui chamado à mesa dos oficiais, onde um deles me examinou atentamente procurando o motivo para a minha dispensa:
- Vire de costas. Não, nada sério na coluna. Coloque as mãos paralelas ao corpo. Não, tudo proporcional. Dobre a perna. Não, tudo funcionando normalmente. Você tem asma? Também não? Deixe eu ver, olhe para mim. Ah, você é estrábico! Pronto, resolvido. Tá dispensado!
Encaminhado à sala contígua, o segundo momento hilário do dia: como não era (e, imagino, não deve ainda ser) hábito do Exército Brasileiro dispensar alguém sem fazer a pessoa passar por algum perrengue, tínhamos que ficar ali naquela sala, mofando à espera da dispensa, com as seguintes regras, que eram repetidas a todo momento. Aos gritos, como não poderia deixar de ser.
- Não pode sentar no chão e não pode encostar na parede – explicou-me, em tom de voz brando (certamente fruto da interferência do capitão Jorge), o soldado que me acompanhou até lá, subitamente justificando a grande quantidade de pessoas acocoradas que ali se via.
Era uma sacanagem, evidente, mas não se pode deixar de reconhecer que é bem bolada: o cara tem que ficar ali, esperando horas a fio os papéis de dispensa, não pode sentar no chão e não pode encostar na parede. Resta a ele apenas o recurso de se acocorar, sendo que os que se desequilibravam e se apoiavam na parede a fim de não cair no chão eram imediatamente admoestados pelo soldado que ficava na porta:
- Botou a mão na parede, é? Qual é seu nome? Vai pro fim da fila!
Cheguei na sala e fiquei ali, de pé, tomando o cuidado de não me aproximar demais da parede e preparando-me psicologicamente para uma longa espera. Mas eis que o eficiente capitão Jorge resolveu deixar claro que eu era filho de um amigo do Exército. E filho de amigo, amigo é, certo?
- O capitão Jorge me falou do seu problema no joelho – disse-me o soldado que trouxe uma cadeira para que eu me sentasse.
Basta dizer que, se um olhar fosse capaz de matar alguém, eu teria caído morto ali na hora, fulminado pelos olhos de todos os que esperavam na sala, sem poder sentar no chão ou encostar na parede. E a eficiência do capitão Jorge ainda nem tinha começado. Logo o mesmo soldado retorna, com mais uma cadeira:
- É pra você colocar a perna do joelho estourado. Foi o capitão Jorge que mandou – disse ele, apontando a figura do capitão Jorge, que piscava o olho malandramente para mim.
E assim, entre as mais desairosas manifestações dirigidas à minha mãe e sendo observado de maneira nada amistosa pelos meus colegas de sala, fiquei ali, no meio daquele monte de gente acocorada, sentado confortavelmente numa cadeira e com uma segunda cadeira para colocar os pés. Tentei protestar que a cadeira não era necessária, mas o soldado insistiu que havia sido orientado pelo capitão Jorge a proceder daquela forma e que ele havia explicado sobre as dores terríveis que tinha quando ficava de pé. Para minha sorte, o bom capitão também fez com que a muito aguardada dispensa não demorasse, já que, pelos olhares que eu recebia, uma revolta poderia surgir ali a qualquer momento. Quando veio a notícia de que meus papéis estavam prontos e que eu poderia ir apanhá-los, me levantei, agradeci ao soldado e fui saindo, não sem antes ouvir ele dizer a um dos rapazes que, vendo a cadeira vazia, tentou sentar-se nela:
- Tá pensando o quê, rapaz? Pode ir levantando agora mesmo!
- Mas o rapaz estava sentado – protestou o ousado.
- Sim, mas ele é amigo do capitão Jorge!
Passadas apenas umas duas horas, eu saía do quartel,  com meu atestado de dispensa mas mãos, uma tarefa que, para a maioria daqueles acocorados na sala, demoraria o dia inteiro. E se a alguém que está lendo ocorreu incluir-me em alguma categoria pouco recomendável de pessoa, sinta-se à vontade. Foi peixada, mesmo, admito. E sou muito grato até hoje ao capitão Jorge, embora nunca mais o tenha encontrado depois desse dia. E olha que, mesmo com peixada e tudo, eu quase ponho tudo a perder tentando não parecer ingrato para com o Exército Brasileiro:
- Agradeço muito, capitão. Eu até que queria poder servir, mas tem a escola, a faculdade, sabe como é... – disse eu, simulando um interesse inexistente pela vida na caserna.
- Ah, você queria servir? Porque não disse antes? Podemos dar um jeito de você servir depois da faculdade, é fácil.
- Imagine, capitão, não quero dar mais esse trabalho ao senhor... – respondi, morrendo de medo de não conseguir mais sair daquela situação.
- Trabalho nenhum, seria um prazer ajudar o Exército a contar com gente boa, gente formada na faculdade.
- Vamos deixar assim mesmo, capitão? Na verdade, verdade mesmo, eu não quero servir.
- Eu sei, falei isso só pra te dar um susto... – disse ele, rindo e confirmando que ninguém consegue ser dispensado do serviço militar sem passar por um perrengue.

Quem é doido de não reconhecer que uma peixada às vezes facilita a vida?

25 de janeiro de 2013

Quem tá errado não reclama

Ao volante, a intrépida dona Regina, mãe deste que escreve, leva uma fechada daquelas e buzina para a "fechadora". Mas eis que a fechadora, muito chateada, resolve que não vai levar o desaforo pra casa e passa a perseguir dona Regina, pagando aquela buzinada com juros e correção e buzinando alucinadamente atrás do carro dela. Dona Regina para no sinal, a fechadora para bem ao lado e, com ar triunfante, declara: 
- Eu também tenho buzina, viu?
Dona Regina, com a calma que lhe é peculiar, devolve sem nem deixar quicar: 
- Parabéns. E sabe usar direitinho. Só falta aprender a usar o resto do carro. 

Nem o rapaz que estava de carona no carro da fechadora conseguiu ficar sem rir. 

Quem é doido de mexer com dona Regina?

30 de dezembro de 2012

Medicando e andando

"Calma, senhor, vamos levar um dedinho de prosa"

- Você é um médico de cu! - disse o paciente para o proctologista incompetente.
- E eu? - perguntou o urologista.
- Você não, você é um médico do caralho!

22 de dezembro de 2012

Foi por pouco...


- Alô.
- É da padaria Primavera?
- Sim, pois não.
- É sobre um pedido de peru de Natal. Eu queria saber se dá pra cancelar.
- Eu tenho que ver na cozinha se já não está pronto, senhor. Se estiver, não tem como cancelar. Qual é o número do pedido?
- 171.
- 171, 171... Ah, está aqui. Um peru de Natal recheado com limão. Parece que ainda não foi para o forno, não. Estamos em falta de limão.
- Não é limão, é lima.
- Piorou. Se nem limão tá tendo, imagina lima.
- Na verdade, não era bem da fruta que eu estava falando. É lima tipo ferramenta.
- Tipo uma serra?
- Não me fale nesse nome, por favor! Ainda dá pra cancelar?
- Sim, senhor. Não íamos ter como fazer, mesmo. Não temos uma lima para colocar dentro do peru, senhor. Quer fazer o cancelamento?
- Por favor.
- OK, cancelando o pedido 171, um peru  recheado com uma lima. Estava em nome de quem?
- José.
- José de quê?
- Dirceu.
- Não estou vendo esse nome aqui, senhor.
- Deve estar em nome de quem ia pagar. Procura se não tem um Marcos aí. O sobrenome é Valério.
- Ah, está aqui, sim. Em nome de José, com fatura a ser enviada para o sr. Marcos. Muito bem, seu José. Cancelado. Um feliz Natal e um bom ano novo pro senhor.
- O Natal ainda deve ser, mas o ano novo, eu não sei, não...

24 de junho de 2012

Marcha, soldado (1) - Trollado pelo sargento

          Já era o final dos anos 80 e, depois de ter recém-adquirido (e exercido!) o direito ao voto para menores de 18 anos, era hora do dever. Não há direitos sem deveres, afinal, certo? E, no ano em que completaria 18 anos, era meu dever apresentar-me às Forças Armadas e atender ao chamado que volta e meia eu via na TV: "jovem, é glorioso aprender a defender a pátria", sempre me lembrando que, ao contrário do que me parecia, aquilo era "um direito antes de um dever". Fosse como fosse, opcional é que não era. E, em não sendo, nada me restava a fazer a não ser me apresentar para a seleção que responderia à importante questão: estaria eu, afinal de contas, apto a participar da defesa do Brasil? Contra o quê, eu não sei, já que estávamos, como estamos ainda hoje, em paz, condição que perdura desde o final da Guerra do Paraguai. Além da falta de propósito em participar da defesa de algo que não estava sendo atacado, confesso que, mesmo passados alguns poucos anos da redemocratização do Brasil e da volta dos militares aos quartéis, restava ainda um quê de medo desses caras. Sei lá, não era nem por mim, mas se todo mundo que eu conhecia sempre tinha tido medo de militar, coisa boa é que não devia ser. De maneira que defender a pátria era um direito do qual eu abria mão em favor dos que estavam a fim de fazê-lo. Mas como dizer isso sem ofender o Exército Brasileiro, ou pelo menos, sem precisar pagar aquele mico básico? A resposta estava em casa mesmo: meu pai. Que não era militar, mas mantinha relações boas com um pessoal do Exército desde que emprestara um espaço sob sua administração para uma exposição do pessoal de verde-oliva. Explicada a questão aos conhecidos de lá, veio a orientação: apresentar-me normalmente e avisar quando seria o exame de saúde.
          No dia da apresentação, lá fui eu, às quatro da manhã, garantir lugar na fila. Dei sorte, eu era o quinto. Meia hora depois, a fila já dava voltas. Gente que não acabava mais, todo mundo com os documentos e as fotos na mão, esperando, esperando, esperando. De repente, surge um sargento que começa a conferir os documentos dos primeiros da fila e, do nada, avisa aos gritos:
          - Antes de mais nada, eu preciso saber se tem gente aqui da Comunidade A. Alguém, alguém? Aqui, a galera da Comunidade A tem tratamento especial.
          Comunidade A, caso meus 13 leitores estejam meio distraídos, é pseudônimo, claro. Fictício total. Mas a quantidade de gente de lá que havia na fila era bem real. Umas quarenta, cinquenta pessoas se apresentaram. O sargento continuou:
          - Sai todo mundo dessa fila e formem outra aqui do lado.
          Sim, sim, eu sei o que vocês devem estar pensando. É foda, mesmo. Logo a outra fila estava formada, cheia de pessoas sorridentes. O primeiro da fila original, que já estava lá antes de todos, protestou levemente, disse que se atrasaria para o trabalho, claramente esperando ser acompanhado por outros, o que  não se deu, já que ninguém estava a fim de ser esculachado ali. Sobrou para o babaca solitário:
          - Ah, tem trabalho, é? E não concorda com o tratamento especial? Tudo bem, Entra na outra fila, sem neuras. Fica logo na frente pra não reclamar mais - respondeu o sargento.
          Será possível que tinha um cara gente boa ali? Que sorte o carinha parecia ter dado. Mas só parecia. Arrumada a fila, a surpresa. De novo o sargento:
          - Muito bem, agora todo mundo da fila da comunidade A atravessa a rua e espera do outro lado. Quando toda essa fila acabar de ser atendida, a gente atende vocês. Eu sou da Comunidade B e detesto a galera da Comunidade A. Tratamento especial pra vocês...
          O rapaz que era o primeiro da fila e tinha tido a pachorra de reclamar nem merecia o golpe de misericórdia que veio depois disso, quando o sargento instruiu o guarda:
          - Quando essa fila acabar, chame o último daquela e depois o penúltimo, até chegar naquele babaca que reclamou ali. Deixa esse para o final de tudo.




          Saí dali certo de que a má fama do Exército não era de todo imerecida. E de que, definitivamente, eu não queria fazer parte daquilo. Só faltava o exame de saúde para a aguardada dispensa (onde o prometido é que eu teria uma forcinha). Mas essa é outra história, que conto depois.


          Quem é doido de, não sendo da Comunidade A, não reconhecer que a sacanagem foi boa?

19 de junho de 2012

Zoológico humano

Do nada, as vozes começaram a se projetar pelo corredor e tornaram pública uma conversa que o bom-senso mandaria que fosse travada no interior do apartamento:
- Eu só vou sair daqui quando você abrir a porta! Não, meu amor, eu não vou embora, só quando você abrir a porta! Meu querido, eu sei que você está com mais alguém aí dentro. Eu só quero que você abra essa porta e tenha a coragem de assumir as suas merdas! Ah, não vai abrir? Pois eu tenho todo o tempo do mundo para ficar aqui. Uma hora vocês vão ter que sair daí. E eu estarei aqui.
Um clique. A porta se abriu. Uma voz pedia calma.
- Calma? Mas quem está nervoso aqui? Só se for você. Cadê a pessoa que estava aí com você? Mas como não tem ninguém? Então, porque você está bloqueando a porta? Deixa eu entrar!
Novo pedido de calma. Uma terceira voz se faz ouvir. Assustada. Tensa.
- Ah, então é ela que não estava aí com você, é? Mas que coisa. Pagou quanto por essa tipa? Ah, como é que você não é puta, meu amor? Me desculpe, mas com essa cara e essa roupa, se não é merece ser confundida com uma. Cobrou quanto dele? Anda, fala, cobrou quanto? Ah, trezentos reais? Era só isso que eu queria saber, quanto vale a dignidade de uma pessoa. A dele valeu trezentos reais. Pra mim,. esse foi o preço que custou para saber que você é um canalha! Bastou eu viajar uns dias e você já me trai, se mete com puta. E não satisfeito em se meter com elas, ainda trouxe uma para dentro da nossa casa. Sim, porque essa também era minha casa, não é? Ou já esqueceu que eu moro, ou melhor, morava aqui também? E não pedi para isso, não, foi você que foi lá me buscar em casa e me pedir para por favor vir viver com você! Agora me apronta uma dessas? Canalha, desclassificado!
Choro. Soluços.
- Ah, minha filha, choro de puta era o que me faltava, mesmo. Pegou sua grana? Então ainda está fazendo o quê aqui? Tchau, vaza. Vai rodar sua bolsinha em outro lugar.
A outra voz ensaia uma tímida despedida, uma promessa de ligação posterior para esclarecer tudo e a recomendação de que não leve a mal. Chamou a fulana pelo nome.
- Ah, ela tem nome. E merece uma ligação para esclarecer tudo. Eu mereço, mesmo. Vou me meter com canalha, dá nisso! Vai me deixar entrar ou não?
Passos porta adentro. Porta se fecha. As vozes se tornam inaudíveis e o silêncio volta. Deve ter rolado um DR de proporções cataclísmicas, mas essa, como deve ser, foi travada dentro do apartamento.

Agora, releia toda essa história sabendo que a voz que tanto reclamava não era uma esposa que pegou o marido com uma puta, mas de um gay que pegou o companheiro (meu vizinho!) com uma mulher e, ainda por cima, puta.

Definitivamente, tenho que começar a procurar outro apartamento. Não bastasse o vizinho pianista (que, pelo menos, toca maravilhosamente bem), o vizinho chicleteiro (que, como convém a essa espécie, tem um gosto musical para lá do Deus-me-livre e um aparelho de som de altíssima potência) e o vizinho boca-suja (sempre gritando impropérios em altos brados, na quadra que fica em frente à minha janela), agora tenho um vizinho putanheiro e tenho (ou tinha., sei lá no que deu a DR) um vizinho barraqueiro...

Quem é doido de não achar que esse zoológico humano que é meu prédio tem uma fauna singular?