24 de junho de 2012

Marcha, soldado (1) - Trollado pelo sargento

          Já era o final dos anos 80 e, depois de ter recém-adquirido (e exercido!) o direito ao voto para menores de 18 anos, era hora do dever. Não há direitos sem deveres, afinal, certo? E, no ano em que completaria 18 anos, era meu dever apresentar-me às Forças Armadas e atender ao chamado que volta e meia eu via na TV: "jovem, é glorioso aprender a defender a pátria", sempre me lembrando que, ao contrário do que me parecia, aquilo era "um direito antes de um dever". Fosse como fosse, opcional é que não era. E, em não sendo, nada me restava a fazer a não ser me apresentar para a seleção que responderia à importante questão: estaria eu, afinal de contas, apto a participar da defesa do Brasil? Contra o quê, eu não sei, já que estávamos, como estamos ainda hoje, em paz, condição que perdura desde o final da Guerra do Paraguai. Além da falta de propósito em participar da defesa de algo que não estava sendo atacado, confesso que, mesmo passados alguns poucos anos da redemocratização do Brasil e da volta dos militares aos quartéis, restava ainda um quê de medo desses caras. Sei lá, não era nem por mim, mas se todo mundo que eu conhecia sempre tinha tido medo de militar, coisa boa é que não devia ser. De maneira que defender a pátria era um direito do qual eu abria mão em favor dos que estavam a fim de fazê-lo. Mas como dizer isso sem ofender o Exército Brasileiro, ou pelo menos, sem precisar pagar aquele mico básico? A resposta estava em casa mesmo: meu pai. Que não era militar, mas mantinha relações boas com um pessoal do Exército desde que emprestara um espaço sob sua administração para uma exposição do pessoal de verde-oliva. Explicada a questão aos conhecidos de lá, veio a orientação: apresentar-me normalmente e avisar quando seria o exame de saúde.
          No dia da apresentação, lá fui eu, às quatro da manhã, garantir lugar na fila. Dei sorte, eu era o quinto. Meia hora depois, a fila já dava voltas. Gente que não acabava mais, todo mundo com os documentos e as fotos na mão, esperando, esperando, esperando. De repente, surge um sargento que começa a conferir os documentos dos primeiros da fila e, do nada, avisa aos gritos:
          - Antes de mais nada, eu preciso saber se tem gente aqui da Comunidade A. Alguém, alguém? Aqui, a galera da Comunidade A tem tratamento especial.
          Comunidade A, caso meus 13 leitores estejam meio distraídos, é pseudônimo, claro. Fictício total. Mas a quantidade de gente de lá que havia na fila era bem real. Umas quarenta, cinquenta pessoas se apresentaram. O sargento continuou:
          - Sai todo mundo dessa fila e formem outra aqui do lado.
          Sim, sim, eu sei o que vocês devem estar pensando. É foda, mesmo. Logo a outra fila estava formada, cheia de pessoas sorridentes. O primeiro da fila original, que já estava lá antes de todos, protestou levemente, disse que se atrasaria para o trabalho, claramente esperando ser acompanhado por outros, o que  não se deu, já que ninguém estava a fim de ser esculachado ali. Sobrou para o babaca solitário:
          - Ah, tem trabalho, é? E não concorda com o tratamento especial? Tudo bem, Entra na outra fila, sem neuras. Fica logo na frente pra não reclamar mais - respondeu o sargento.
          Será possível que tinha um cara gente boa ali? Que sorte o carinha parecia ter dado. Mas só parecia. Arrumada a fila, a surpresa. De novo o sargento:
          - Muito bem, agora todo mundo da fila da comunidade A atravessa a rua e espera do outro lado. Quando toda essa fila acabar de ser atendida, a gente atende vocês. Eu sou da Comunidade B e detesto a galera da Comunidade A. Tratamento especial pra vocês...
          O rapaz que era o primeiro da fila e tinha tido a pachorra de reclamar nem merecia o golpe de misericórdia que veio depois disso, quando o sargento instruiu o guarda:
          - Quando essa fila acabar, chame o último daquela e depois o penúltimo, até chegar naquele babaca que reclamou ali. Deixa esse para o final de tudo.




          Saí dali certo de que a má fama do Exército não era de todo imerecida. E de que, definitivamente, eu não queria fazer parte daquilo. Só faltava o exame de saúde para a aguardada dispensa (onde o prometido é que eu teria uma forcinha). Mas essa é outra história, que conto depois.


          Quem é doido de, não sendo da Comunidade A, não reconhecer que a sacanagem foi boa?

19 de junho de 2012

Zoológico humano

Do nada, as vozes começaram a se projetar pelo corredor e tornaram pública uma conversa que o bom-senso mandaria que fosse travada no interior do apartamento:
- Eu só vou sair daqui quando você abrir a porta! Não, meu amor, eu não vou embora, só quando você abrir a porta! Meu querido, eu sei que você está com mais alguém aí dentro. Eu só quero que você abra essa porta e tenha a coragem de assumir as suas merdas! Ah, não vai abrir? Pois eu tenho todo o tempo do mundo para ficar aqui. Uma hora vocês vão ter que sair daí. E eu estarei aqui.
Um clique. A porta se abriu. Uma voz pedia calma.
- Calma? Mas quem está nervoso aqui? Só se for você. Cadê a pessoa que estava aí com você? Mas como não tem ninguém? Então, porque você está bloqueando a porta? Deixa eu entrar!
Novo pedido de calma. Uma terceira voz se faz ouvir. Assustada. Tensa.
- Ah, então é ela que não estava aí com você, é? Mas que coisa. Pagou quanto por essa tipa? Ah, como é que você não é puta, meu amor? Me desculpe, mas com essa cara e essa roupa, se não é merece ser confundida com uma. Cobrou quanto dele? Anda, fala, cobrou quanto? Ah, trezentos reais? Era só isso que eu queria saber, quanto vale a dignidade de uma pessoa. A dele valeu trezentos reais. Pra mim,. esse foi o preço que custou para saber que você é um canalha! Bastou eu viajar uns dias e você já me trai, se mete com puta. E não satisfeito em se meter com elas, ainda trouxe uma para dentro da nossa casa. Sim, porque essa também era minha casa, não é? Ou já esqueceu que eu moro, ou melhor, morava aqui também? E não pedi para isso, não, foi você que foi lá me buscar em casa e me pedir para por favor vir viver com você! Agora me apronta uma dessas? Canalha, desclassificado!
Choro. Soluços.
- Ah, minha filha, choro de puta era o que me faltava, mesmo. Pegou sua grana? Então ainda está fazendo o quê aqui? Tchau, vaza. Vai rodar sua bolsinha em outro lugar.
A outra voz ensaia uma tímida despedida, uma promessa de ligação posterior para esclarecer tudo e a recomendação de que não leve a mal. Chamou a fulana pelo nome.
- Ah, ela tem nome. E merece uma ligação para esclarecer tudo. Eu mereço, mesmo. Vou me meter com canalha, dá nisso! Vai me deixar entrar ou não?
Passos porta adentro. Porta se fecha. As vozes se tornam inaudíveis e o silêncio volta. Deve ter rolado um DR de proporções cataclísmicas, mas essa, como deve ser, foi travada dentro do apartamento.

Agora, releia toda essa história sabendo que a voz que tanto reclamava não era uma esposa que pegou o marido com uma puta, mas de um gay que pegou o companheiro (meu vizinho!) com uma mulher e, ainda por cima, puta.

Definitivamente, tenho que começar a procurar outro apartamento. Não bastasse o vizinho pianista (que, pelo menos, toca maravilhosamente bem), o vizinho chicleteiro (que, como convém a essa espécie, tem um gosto musical para lá do Deus-me-livre e um aparelho de som de altíssima potência) e o vizinho boca-suja (sempre gritando impropérios em altos brados, na quadra que fica em frente à minha janela), agora tenho um vizinho putanheiro e tenho (ou tinha., sei lá no que deu a DR) um vizinho barraqueiro...

Quem é doido de não achar que esse zoológico humano que é meu prédio tem uma fauna singular?

12 de junho de 2012

Portais do Inferno (2)










Ainda bem que foi um enfarto cardíaco. Se fosse de outro tipo, a medicina ia ter muito trabalho para explicar...


Quem é doido de não saber que todo enfarte é cardíaco?