14 de janeiro de 2014

Ao Márcio

Foram dois anos de convivência diária e, depois disso, já são quase vinte de uma admiração reverente pelo sujeito, um cara tão irreverente quanto possível quando não estava num de seus famosos ataques de mau humor. Um mau humor que, diga-se de passagem, era motivo até mesmo de uma auto-ironia, fina como era o próprio, ao me presentear, num Natal, com um exemplar do livro “O Melhor do Mau Humor” que tenho agora, enquanto escrevo, diante de mim com um cartão encimado por seu nome impresso que me dizia: “Agora você vai ver e ler donde vem a minha inspiração para exibir tanto bom humor”.
O início, é mister que se diga, não foi auspicioso: redator inexperiente, recém-chegado à agência, fui levar um de meus textos para que passasse por sua criteriosa e sempre extremamente bem-feita revisão (coisa que, ressalte-se, aprendi a fazer com ele e até hoje, quando faço as indicações de correções nos textos que porventura são submetidos à minha análise, utilizo as mesmas indicações que aprendi observando-o e ouvindo dele todos os porquês de se marcar determinada coisa assim e outra coisa assado). Disse que eu era inexperiente? Pois sim, mas também era consciente de que não cometia erros de português com frequência, de modo que foi com certa impaciência que esperei que ele lesse o texto uma, duas, três vezes, intercalando seu olhar entre o texto e a minha cara ansiosa para, tomando coragem, perguntar-lhe:
- Você achou um erro?
Com o “bom humor” que lhe era peculiar, fez o seu famoso “hunf” e me disse apenas isso, seco e cortante:
- Ainda não.
Para, em seguida, reforçar a parte que deveria fazer com que eu me recolhesse à minha insignificância:
- Ainda...
Com meus brios desafiados e a confiança sem limites que a pouca idade e a falta de experiência me conferiam, lancei-lhe o desafio, sem nem imaginar a quem o fazia:
- Pois eu pago uma cerveja a cada erro meu que você encontrar.
E ele, na lata, demonstrando desde esse primeiro contato a verve, a ironia e a genialidade que passei a admirar:
- Obrigado, mas não quero virar alcoólatra.
Foi só no retorno à sala da criação que fui interpelado pelos presentes à cena que, apavorados, me diziam que aquele revisor a quem eu havia acabado de desafiar era não apenas um dos sócios da agência, mas também um grande escritor e um cronista de mão cheia, que certamente não me perdoaria pela ousadia.
Exceto pela parte em que afirmaram que ele era um dos sócios da agência, erraram nas outras afirmações: primeiro porque o queridíssimo Márcio Rubens Prado era um escritor e cronista não de mão, mas de alma cheia, cuja prosa tinha o dom de sempre me colocar um pouco triste, pois aquele texto teria um fim e o prazer que sua leitura proporcionava se findaria igualmente. E segundo porque ele me perdoou pela ousadia, sim. Embora tenha sido, desde esse dia, o mais atento revisor do mundo, sempre ávido por me surpreender num erro, gosto que eu ia me recusando a dar-lhe dia após dia, ao mesmo tempo em que ia tomando contato com suas crônicas saborosas, suas observações certeiras e ácidas sobre a natureza humana e sua aversão pelo trocadilho, que eu, ao contrário dele, sempre apreciei e usava, não sem parcimônia, só para vê-lo exclamar seus famosos “hunfs", para depois, quase que às escondidas, permitir-se rir e comentar, obviamente sem que eu estivesse por perto para me dar esse gostinho:
- Até que esse foi bom...
O mesmo comentário, aliás, que ele dirigia a mim quando passei, então, a submeter ao seu crivo alguns dos textos não-publicitários que eu cometia nessa época, que ele lia e, eventualmente, circulava em vermelho certas passagens, me devolvendo sem dizer mais nada. E eu, ao analisar depois, sempre chegava à conclusão de que era realmente o trecho circulado que poderia melhorar, que quebrava o ritmo do texto e que precisava ser reescrito. Até que, um dia, ao me devolver um deles, me disse o seguinte:
- Olha só, você gosta dela, ela gosta de você, vocês precisam parar de se encontrar desse jeito. Assume o caso e leva ela a sério!
Pasmo, sem compreender e com medo do mal-entendido, já que eu tinha namorada, perguntei de quem se tratava e ouvi dele a resposta, genial como sempre e provavelmente o maior elogio que eu recebi na minha vida escrevinhante:
- A língua portuguesa, oras. Eu sei que você gosta dela, mas parece que é recíproco. Leva isso a sério.
Desde então, eu tento. E sempre que termino um texto que acho particularmente bom, tento imaginar o que me diria o Márcio, como que a tentar saber se é realmente bom assim a ponto de ser capaz de passar pela escrupulosa análise dele.
Hoje de manhã, veio a notícia: Márcio Prado cometeu a deselegância, talvez única na sua vida, de nos deixar sem a perspectiva de um novo texto, de uma nova tirada, de um novo e mal-humorado “hunf”. Essa alma prodigiosa que não certamente por acaso tem sua origem numa localidade que tem alma até no nome, São Miguel y Almas de Guanhães, partiu. Vítima de uma doença do coração que deveria ser ainda mais grave por ser o mesmo grande como era. Tão grande que, muito tempo passado do dia em que lhe lancei o desafio de pagar uma cerveja a cada erro meu que encontrasse, ele me chama à sua sala e me mostra que eu havia, afinal, lhe dado esse gosto. E, ato contínuo, saca um calendário da gaveta e me diz, mostrando o quanto aquilo havia mexido com ele:
- Nesse dia aqui, que eu até marquei no calendário, você me disse que me pagaria uma cerveja a cada erro seu que eu encontrasse e eu te disse que não queria virar alcoólatra. Pois eu teria ficado mais de um ano sem beber...
Grande Márcio Rubens Prado! A tristeza pelo seu passamento, que me trouxe lágrimas aos olhos, só não é maior do que a enorme alegria por tê-lo conhecido, pelo privilégio de ter sido tantas vezes convidado a acompanhá-lo nas suas visitas às livrarias da Savassi onde você me indicou tantas leituras e pela grande sorte que eu tive de ter podido aprender tanto com um mestre como você. Vai em paz. Obrigado por tudo! E me perdoe se este texto não é, nem de longe, tão genial quanto o que você produziria. De qualquer forma, certamente é bem melhor do que teria sido se você não tivesse passado pela minha vida.

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