Alguns posts atrás está a estória
de como eu cumpri meu dever patriótico de oferecer meus serviços ao Exército
Brasileiro (veja aqui). Torcendo igual maluco para que eles agradecem e dispensassem o
oferecimento, mas cumpri. E daí que chega a hora de o Exército, desafiando a
sabedoria popular que diz que a cavalo dado não se olha os dentes, nos obrigar,
a mim e ao enorme contingente de rapazotes que haviam completado ou iriam completar
até o final daquele ano os seus dezoito anos de idade, a passar por um exame
médico para conferir se possuíamos a saúde necessária para servir à Pátria.
Como nunca
fui, com a graça do Eterno, uma pessoa de saúde fraca, havia o risco de que
fosse selecionado para vestir o verde-oliva de uma farda. O que, naquelas
alturas do campeonato, seria algo totalmente indesejável, já que teria que sair
da escola, adiar os planos de fazer uma faculdade e atrasar minha vida durante
todo o período que durasse tal chamamento da Pátria. Foi a vez do meu pai,
sujeito que mantinha boas relações com o Exército Brasileiro desde que, no
desempenho de suas funções profissionais, havia cedido um espaço sob sua
administração para que os homens de verde-oliva pudessem sediar ali uma
exposição. Ganhou até diploma de “amigo do Exército Brasileiro”. E, como amigo
da instituição, explicou o problema que minha convocação suscitaria e pediu uma
interferência no sentido de que tal contratempo fosse evitado. Assim, no dia
marcado para minha apresentação para os exames médicos, fui acompanhado pelo
capitão Jorge, que faria as tratativas necessárias para que minha dispensa
ocorresse sem problemas. O que eu não sabia era o grau de amizade do meu pai
com o glorioso Exército Brasileiro. Que, a julgar pela maneira como fui
tratado, era praticamente uma amizade de infância.
Logo no
começo, passei acompanhando o capitão Jorge por uma longa fila que se formava,
onde os jovens esperavam por sua vez de serem submetidos à avaliação médica.
Chegando à frente da fila, o capitão Jorge, na maior falta de cerimônia, chama
um cabo ou sargento que era o responsável, cochicha alguma coisa no ouvido do
sujeito e, após uma continência batida de pronto pelo interlocutor, sou
orientado a assumir o primeiro posto da fila. O que, se me poupou de uma longa
espera na tal fila, não me poupou dos comentários que naturalmente começaram a
surgir. Pobre da minha mãe, que não tinha nada a ver com nada daquilo e era
homenageada por muitos dos que se revoltavam contra a (reconheço) injustiça.
Pelo menos a espera foi rápida e, tão logo saía do exame o grupo anterior,
formado por vinte pessoas, entrei na sala dos médicos com outras dezenove. Sala
de exame, óbvio, é modo de falar. Parecia mais um paredão de fuzilamento.
Encostados a uma parede, encarávamos uma mesa onde oficiais médicos nos
observavam atentamente. Fomos, então, orientados a nos despir, mantendo apenas
a cueca. Então, um momento hilário: apesar de muito clara a orientação para
mantermos apenas a cueca, um dos vinte do meu grupo manteve também as meias. Um
dos oficiais, que passava pela fila checando nome de um por um, deteve-se em
frente a esse rapaz e vociferou:
- Sargento!
- Senhor, meu capitão – apressou-se
em responder o sargento, postando-se à frente do oficial em posição de sentido,
com cara de que sabia que vinha coisa por aí.
- Você orientou o pessoal a ficar
só de cueca, sargento?
- Positivo, meu capitão!
- Orientou esse aqui também? –
indagou apontando o rapaz de meias, bem em frente a ele.
- Positivo, meu capitão.
- E por que permitiu que ele não
seguisse a orientação, sargento?
- Não permiti, meu capitão. Ele
foi orientado.
- Resolva isso, sargento! –
ordenou o capitão, dando as costas ao sargento e ao rapaz que insistia em
manter as meias.
Imediatamente o sargento adquiriu
outro tom de voz e se dirigiu ao rapaz já aos gritos:
- Você é surdo, é burro ou tá de
sacanagem, rapaz? Não ouviu que é pra ficar só de cueca, não?
- Não posso tirar a meia não,
senhor! – foi a resposta balbuciante do rapaz, que se apequenava a olhos vistos
diante da situação.
- Como é? Não pode? Da Silva!
Araújo! – chamou o sargento, sendo prontamente atendido por dois soldados
enormes, daqueles de dar medo. – Ajudem o rapaz a tirar as meias!
Antes que fosse virado do avesso
por aqueles dois brutamontes, o rapaz gemeu:
- Tudo bem, tudo bem... eu tiro.
E, tirando a primeira das meias,
revelou o que tanto tentava esconder: tinha as unhas dos pés pintadas, despertando
a gargalhada geral dos que estavam enfileirados e uma cara no oficial que até
hoje eu não sei se era ódio, revolta ou vontade de abater o pobre ali mesmo, a
tiros. Vermelho como um tomate, o oficial estava num estado de nervos tal que
mal conseguia falar direito:
- Peguem... Tirem... Levem.. Querem
saber? Levem esse veadinho para a salinha e deixem lá até eu resolver o que
fazer com ele. Só não mando pra fila dos que vão servir agora mesmo porque ele
é capaz de gostar de viver cercado de homem! Você vai ser dispensado, meu
jovem. Mas vai se foder um bocado pra conseguir isso!
Passado esse momento de
distração, era hora de retomar os trabalhos. E lá vinha o oficial médico de um
em um, mandando que abaixássemos a cueca, colocássemos a mão na boca e
soprássemos com força, a fim de verificar a presença de alguma hérnia nas
nossas partes baixas (em tempo: ô tarefa ingrata, essa de sair conferindo o
bilau de um por um. Servir a Pátria exige sacrifício, só pode ser isso...).
Quando chegou a minha vez, um cabo correu até o oficial e disse-lhe alguma
coisa para, em seguida, ele me mandar não abaixar a cueca:
- Você não. Você está com o
capitão Jorge, vai ser dispensado.
E, assim sendo, com minha
intimidade preservada dos olhares curiosos do tal médico, fui chamado à mesa
dos oficiais, onde um deles me examinou atentamente procurando o motivo para a
minha dispensa:
- Vire de costas. Não, nada sério
na coluna. Coloque as mãos paralelas ao corpo. Não, tudo proporcional. Dobre a
perna. Não, tudo funcionando normalmente. Você tem asma? Também não? Deixe eu
ver, olhe para mim. Ah, você é estrábico! Pronto, resolvido. Tá dispensado!
Encaminhado à sala contígua, o
segundo momento hilário do dia: como não era (e, imagino, não deve ainda ser)
hábito do Exército Brasileiro dispensar alguém sem fazer a pessoa passar por
algum perrengue, tínhamos que ficar ali naquela sala, mofando à espera da
dispensa, com as seguintes regras, que eram repetidas a todo momento. Aos
gritos, como não poderia deixar de ser.
- Não pode sentar no chão e não
pode encostar na parede – explicou-me, em tom de voz brando (certamente fruto
da interferência do capitão Jorge), o soldado que me acompanhou até lá,
subitamente justificando a grande quantidade de pessoas acocoradas que ali se
via.
Era uma sacanagem, evidente, mas
não se pode deixar de reconhecer que é bem bolada: o cara tem que ficar ali,
esperando horas a fio os papéis de dispensa, não pode sentar no chão e não pode
encostar na parede. Resta a ele apenas o recurso de se acocorar, sendo que os
que se desequilibravam e se apoiavam na parede a fim de não cair no chão eram
imediatamente admoestados pelo soldado que ficava na porta:
- Botou a mão na parede, é? Qual
é seu nome? Vai pro fim da fila!
Cheguei na sala e fiquei ali, de
pé, tomando o cuidado de não me aproximar demais da parede e preparando-me
psicologicamente para uma longa espera. Mas eis que o eficiente capitão Jorge
resolveu deixar claro que eu era filho de um amigo do Exército. E filho de
amigo, amigo é, certo?
- O capitão Jorge me falou do seu
problema no joelho – disse-me o soldado que trouxe uma cadeira para que eu me sentasse.
Basta dizer que, se um olhar
fosse capaz de matar alguém, eu teria caído morto ali na hora, fulminado pelos
olhos de todos os que esperavam na sala, sem poder sentar no chão ou encostar
na parede. E a eficiência do capitão Jorge ainda nem tinha começado. Logo o
mesmo soldado retorna, com mais uma cadeira:
- É pra você colocar a perna do
joelho estourado. Foi o capitão Jorge que mandou – disse ele, apontando a
figura do capitão Jorge, que piscava o olho malandramente para mim.
E assim, entre as mais desairosas
manifestações dirigidas à minha mãe e sendo observado de maneira nada amistosa
pelos meus colegas de sala, fiquei ali, no meio daquele monte de gente
acocorada, sentado confortavelmente numa cadeira e com uma segunda cadeira para
colocar os pés. Tentei protestar que a cadeira não era necessária, mas o
soldado insistiu que havia sido orientado pelo capitão Jorge a proceder daquela
forma e que ele havia explicado sobre as dores terríveis que tinha quando
ficava de pé. Para minha sorte, o bom capitão também fez com que a muito
aguardada dispensa não demorasse, já que, pelos olhares que eu recebia, uma
revolta poderia surgir ali a qualquer momento. Quando veio a notícia de que
meus papéis estavam prontos e que eu poderia ir apanhá-los, me levantei,
agradeci ao soldado e fui saindo, não sem antes ouvir ele dizer a um dos
rapazes que, vendo a cadeira vazia, tentou sentar-se nela:
- Tá pensando o quê, rapaz? Pode
ir levantando agora mesmo!
- Mas o rapaz estava sentado –
protestou o ousado.
- Sim, mas ele é amigo do capitão
Jorge!
Passadas apenas umas duas horas,
eu saía do quartel, com meu atestado de
dispensa mas mãos, uma tarefa que, para a maioria daqueles acocorados na sala,
demoraria o dia inteiro. E se a alguém que está lendo ocorreu incluir-me em
alguma categoria pouco recomendável de pessoa, sinta-se à vontade. Foi peixada,
mesmo, admito. E sou muito grato até hoje ao capitão Jorge, embora nunca mais o
tenha encontrado depois desse dia. E olha que, mesmo com peixada e tudo, eu
quase ponho tudo a perder tentando não parecer ingrato para com o Exército
Brasileiro:
- Agradeço muito, capitão. Eu até
que queria poder servir, mas tem a escola, a faculdade, sabe como é... – disse
eu, simulando um interesse inexistente pela vida na caserna.
- Ah, você queria servir? Porque
não disse antes? Podemos dar um jeito de você servir depois da faculdade, é
fácil.
- Imagine, capitão, não quero dar
mais esse trabalho ao senhor... – respondi, morrendo de medo de não conseguir
mais sair daquela situação.
- Trabalho nenhum, seria um
prazer ajudar o Exército a contar com gente boa, gente formada na faculdade.
- Vamos deixar assim mesmo,
capitão? Na verdade, verdade mesmo, eu não quero servir.
- Eu sei, falei isso só pra te
dar um susto... – disse ele, rindo e confirmando que ninguém consegue ser
dispensado do serviço militar sem passar por um perrengue.
Quem é doido de não reconhecer
que uma peixada às vezes facilita a vida?
Nenhum comentário:
Postar um comentário